A arte contemporânea portuguesa é marcada por nomes que souberam dialogar com a tradição nacional e, ao mesmo tempo, abrir caminhos para novas linguagens universais. Entre esses nomes, destaca-se José de Guimarães (n. 1939, Guimarães), artista cuja obra é reconhecida pela vitalidade cromática, pela dimensão simbólica e pela fusão entre culturas. O percurso de José de Guimarães revela uma inquietude constante: foi engenheiro, geólogo, arqueólogo, e, sobretudo, um criador que fez da arte um território de encontro entre a memória coletiva e a imaginação.
A singularidade da sua produção está no modo como articula símbolos, cores e referências multiculturais, construindo um vocabulário artístico que, embora profundamente enraizado em Portugal, se abre a influências africanas, japonesas, mexicanas e brasileiras. Este artigo analisa a trajetória do artista, destacando como os seus símbolos e cores se tornaram elementos essenciais de uma linguagem plástica capaz de ressoar na identidade portuguesa e além-fronteiras.
Da formação científica ao despertar artístico
José Maria Fernandes Marques adotou o nome artístico de José de Guimarães em homenagem à sua cidade natal. Antes de se assumir como artista, percorreu caminhos aparentemente distantes da criação estética: estudou Engenharia na Universidade Técnica de Lisboa, formou-se na Academia Militar e colaborou em trabalhos de arqueologia. Essa experiência foi determinante, pois o contacto com fragmentos, vestígios e ruínas despertou nele uma sensibilidade para a simplicidade das formas e para a importância da memória histórica.
Paralelamente, o artista buscava formação artística: teve aulas de pintura com Teresa Sousa e Gil Teixeira Lopes e estudou gravura na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. As viagens que realizou pela Europa entre 1961 e 1966, sobretudo a França, Itália e Alemanha, permitiram-lhe observar obras de mestres como Rubens e compreender a diversidade estética ocidental. Contudo, a viragem decisiva na sua vida artística aconteceria em 1967, em Angola.
Angola: a descoberta do símbolo e da cor
Enviado para Angola como engenheiro militar, José de Guimarães encontrou no continente africano a verdadeira fonte da sua linguagem artística. Fascinado pelos rituais, máscaras, fetiches e tradições locais, o artista mergulhou em sete anos de intensa aprendizagem cultural. Nesse período, venceu prémios em Luanda, como o Primeiro Prémio do Salão de Arte Moderna, e assinou o manifesto “Arte Perturbadora!”, que defendia uma arte capaz de provocar inquietação. Inspirado pelas formas africanas, construiu um alfabeto simbólico composto por sinais gráficos simples, com forte carga arquetípica, que se tornaria uma marca da sua obra. As séries Fetiches, Reis, Amantes, Tentações e Circo revelam esse encontro entre o imaginário africano e o europeu, criando figuras híbridas, entre o humano e o animal, o mineral e o vegetal. Mais do que uma apropriação cultural, tratava-se de uma tentativa de síntese universal, em que a cor intensa e vibrante reforçava o carácter lúdico, fantástico e, ao mesmo tempo, perturbador das composições.
O retorno a Portugal e a afirmação internacional
Após a Revolução de 1974, José de Guimarães regressou a Lisboa. Começou então a trabalhar com materiais inovadores, como papel fabricado por si próprio e fibra de vidro, expandindo as fronteiras entre pintura e escultura. A tridimensionalidade das obras acentuava-se pela aplicação de cores fortes e contrastantes, que conferiam dinamismo às formas. Na década de 1970, expôs na Fundação Calouste Gulbenkian e no Museu Martins Sarmento, recebendo prémios importantes, como o da Exposição Nacional de Gravura em Lisboa e a medalha de bronze no Prémio Europeu de Pintura de Ostende. A década seguinte consolidou o reconhecimento internacional. Participou em exposições no Brasil, na Bienal de São Paulo, em Tóquio, Los Angeles, Veneza e Basel, entre muitas outras cidades. As suas obras conquistaram um público global, e a crítica destacou a forma como conseguia unir humor, cor e reflexão histórica num mesmo gesto criativo.
Japão e México: novos horizontes culturais
As viagens ao Japão, sobretudo a convite do Instituto Goethe de Osaka em 1989, abriram um novo capítulo na sua produção. Ao participar na construção de papagaios de papel segundo a tradição japonesa, o artista incorporou elementos dessa cultura na sua obra, criando peças como Rei D. Sebastião, onde o diálogo entre Portugal e o Oriente é evidente. Da mesma forma, o contacto com o México trouxe para a sua arte o fascínio pela relação local com a morte, inspirando séries em que o macabro e o festivo se cruzam. Mais tarde, o Brasil também marcaria a sua obra, não apenas pela convivência cultural, mas pelo ambiente de cor e energia que dialogava com a sua estética vibrante. Essas viagens confirmam uma constante na sua carreira: a procura de universos simbólicos que, ao mesmo tempo, refletem e expandem a identidade portuguesa.
Símbolos: um código universal
O contributo mais original de José de Guimarães é, sem dúvida, o código simbólico que construiu ao longo da sua carreira. Inspirado por signos africanos, letras, números e slogans, criou uma linguagem visual de grande simplicidade formal e enorme expressividade. Cada símbolo funciona como um hieróglifo contemporâneo, condensando narrativas históricas, memórias culturais e emoções universais. Esse alfabeto visual reflete a preocupação do artista com a comunicação intercultural: não se trata de símbolos fechados numa tradição, mas de signos abertos, capazes de dialogar com públicos de diferentes origens. É essa dimensão que o torna pós-moderno, ao abolir fronteiras entre “alta arte” e “arte primitiva”, entre erudito e popular. A escolha de José de Guimarães para conceber o logótipo turístico internacional de Portugal em 1993 não foi acaso: a sua obra, mais do que qualquer outra, representa uma identidade portuguesa projetada no mundo através de símbolos universais.
A cor: energia e identidade
Outro traço fundamental da sua arte é o uso da cor intensa, vibrante e alegre. Vermelhos, amarelos, azuis e verdes, quase sempre aplicados em blocos contrastantes, conferem dinamismo e teatralidade às obras. Essa opção cromática não apenas remete à energia de culturas como a africana e a brasileira, mas também reflete o espírito lúdico do artista, que utiliza a cor como uma forma de afirmação vitalista. Enquanto em muitos artistas portugueses do século XX predominam tons mais contidos e melancólicos, em José de Guimarães a cor explode como festa, como carnaval. Essa exuberância cromática torna-se também uma marca de distinção no panorama artístico nacional e internacional.
Reconhecimento e legado
Nos anos 1990, José de Guimarães foi amplamente celebrado em Portugal: recebeu o Grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e o Prémio de Artes Visuais da Associação Internacional de Críticos de Arte. A sua cidade natal homenageou-o com a criação do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG), um espaço que reúne a sua obra e coleções de arte africana, chinesa e pré-colombiana adquiridas pelo artista.
Esse gesto sintetiza o espírito da sua carreira: não apenas um criador individual, mas também um mediador cultural, que coloca diferentes tradições em diálogo.
A obra de José de Guimarães é um dos capítulos mais originais da arte portuguesa contemporânea. Nela, símbolos e cores convertem-se em pontes entre culturas, em celebração da diversidade e em afirmação da identidade nacional projetada no mundo.
Do contacto com a arqueologia à imersão nas culturas africana, japonesa, mexicana e brasileira, o artista construiu um vocabulário visual singular, onde signos simples se transformam em narrativas universais. A sua cor intensa e jubilosa rompe com a tradição de uma paleta mais sóbria da arte portuguesa, oferecendo ao público uma experiência de vitalidade e humor.
Mais do que um pintor ou escultor, José de Guimarães é um artista transcultural, cujo trabalho se inscreve tanto na história de Portugal quanto na história global da arte. O seu legado é a demonstração de que a arte pode ser simultaneamente local e universal, portuguesa e cosmopolita, simbólica e festiva.