
O mercado de arte é, para muitos, um território misterioso, quase mitológico. Desde preços exorbitantes até artistas que se tornam milionários da noite para o dia, não faltam histórias, exageros e equívocos sobre como funciona este universo. Porém, como em qualquer sector, é importante separar a realidade da ficção. Neste artigo, desmistificamos alguns dos maiores mitos que envolvem o mercado de arte contemporâneo, histórico e comercial.
Mito 1: “A arte é apenas para ricos”
Um dos mitos mais persistentes sobre o mercado de arte é que apenas os muito ricos podem comprar obras. Embora seja verdade que peças de artistas consagrados podem atingir valores milionários em leilões, a arte é muito mais acessível do que muitos pensam. Existem mercados paralelos, feiras de arte, espaços alternativos, plataformas online e galerias que promovem artistas emergentes com preços acessíveis. Hoje em dia, é possível adquirir uma obra original por menos do que o valor de um smartphone de última geração. O mercado é amplo e diverso, com obras para todos os gostos e orçamentos. Além disso, muitos artistas oferecem prints, edições limitadas ou trabalhos em pequenos formatos, o que facilita o acesso a colecionadores iniciantes.
Mito 2: “Se está em exposição, deve valer uma fortuna”
Só porque uma obra está exposta numa galeria ou numa feira de arte não significa necessariamente que tenha um valor elevado. Muitos espaços culturais apresentam obras por motivos curatoriais, experimentais ou para dar visibilidade a novos talentos. O valor de uma obra depende de vários factores — currículo do artista, técnica, dimensão, materiais usados, contexto histórico e procura do mercado. Além disso, algumas exposições não têm qualquer fim comercial. Nestes casos, o valor simbólico ou conceptual da obra pode ser maior do que o seu valor monetário, desafiando o paradigma puramente económico do mercado.
Mito 3: “Arte boa é arte cara”
Este é talvez um dos equívocos mais prejudiciais, tanto para artistas como para compradores. O preço de uma obra de arte nem sempre reflete a sua qualidade artística. Há obras extraordinárias com valores modestos e peças sobrevalorizadas devido a fenómenos especulativos, modas passageiras ou estratégias de marketing agressivas. O valor estético ou cultural de uma obra é subjectivo e não pode ser medido apenas em euros. A qualidade artística deve ser analisada com base em critérios como inovação, consistência da obra, domínio técnico, contribuição para o discurso artístico e impacto social, e não apenas pelo seu preço de mercado.
Mito 4: “Os artistas vivem todos do seu trabalho”
Apesar do glamour que muitas vezes envolve o mundo da arte, a maioria dos artistas não vive exclusivamente da venda das suas obras. Muitos complementam o seu rendimento com ensino, trabalhos paralelos, bolsas, residências artísticas ou comissões. Os dados são claros: apenas uma pequena percentagem de artistas consegue viver exclusivamente da sua produção artística. Isto deve-se, em parte, à instabilidade do mercado, à falta de apoios institucionais e à valorização desigual do trabalho artístico. O sucesso financeiro de alguns artistas tende a invisibilizar a precariedade que é a realidade de muitos outros.
Mito 5: “Investir em arte é sempre um bom negócio”
Embora a arte possa ser uma forma de investimento, não deve ser vista como um caminho garantido para o lucro. O mercado de arte é volátil, influenciado por tendências culturais, ciclos económicos, reputações mutáveis e eventos externos como crises financeiras ou políticas. É verdade que algumas obras aumentam de valor ao longo do tempo, especialmente se o artista se tornar consagrado. No entanto, prever quais artistas terão uma carreira ascendente é altamente especulativo. Muitos investidores acabam por não recuperar o valor investido ou têm de esperar décadas até ver algum retorno. Quem compra arte com o objectivo de investimento deve fazê-lo com cautela, aconselhamento especializado e consciência dos riscos envolvidos.
Mito 6: “A arte digital não tem valor real”
Com o crescimento dos NFTs (tokens não-fungíveis), este mito ganhou força — tanto em defesa como em crítica. Muitos ainda acreditam que arte digital é algo "menor" por não existir fisicamente, por ser facilmente reproduzível ou por estar associada ao mundo virtual. Contudo, a arte digital é um campo fértil de inovação e criatividade, que exige competências técnicas e conceptuais específicas. Além disso, a escassez e autenticidade das obras digitais podem ser garantidas através de tecnologia blockchain, que permite a compra e venda de arte digital com transparência e rastreabilidade. Como qualquer outra forma de expressão artística, o valor da arte digital está na sua capacidade de comunicar ideias, provocar emoções e desafiar percepções — independentemente do suporte.
Mito 7: “O mercado é controlado por elites e é impossível entrar”
É verdade que há círculos fechados no mercado de arte, com artistas representados por grandes galerias, colecionadores influentes e críticos de renome. Mas também é verdade que há cada vez mais espaços independentes, iniciativas colaborativas, redes sociais e plataformas online que democratizam o acesso à arte. Hoje, um artista pode construir uma carreira sólida sem depender exclusivamente dos grandes circuitos. Pode expor em espaços alternativos, vender diretamente pelas redes sociais, participar em feiras independentes e encontrar o seu público de forma orgânica. Da mesma forma, qualquer pessoa interessada pode iniciar-se como colecionadora, apreciadora ou mecenas, independentemente do seu capital inicial.
Mito 8: “Se um artista vende muito, é porque é comercial ou pouco sério”
Outro preconceito comum é associar sucesso comercial a uma suposta falta de profundidade artística. Esta visão é, na melhor das hipóteses, reducionista. Vender obras não compromete necessariamente a integridade conceptual de um artista.
Muitos artistas conseguem equilibrar sucesso comercial com um trabalho crítico, inovador e socialmente relevante. O verdadeiro desafio está em manter a coerência e autenticidade mesmo perante a pressão do mercado — e muitos conseguem fazê-lo com mestria.Mito 9: “O valor da arte está apenas no objecto”
Este mito ignora toda a dimensão simbólica, processual e relacional da arte contemporânea. Muitas vezes, o que se valoriza não é apenas o objecto físico, mas o contexto da sua criação, o conceito por trás da obra, a performance que a acompanha, ou o discurso crítico que ela gera. Algumas obras nem sequer têm um “objecto” no sentido tradicional. São efémeras, participativas, digitais ou imateriais. E mesmo assim, têm valor — tanto artístico como, em alguns casos, de mercado.
Mito 10: “Arte é inútil ou supérflua”
Por fim, o mito mais profundo e talvez mais perigoso: o de que a arte é um luxo sem função, acessório, dispensável. Nada poderia estar mais longe da verdade. A arte tem um papel fundamental na construção de identidades, na crítica social, na preservação da memória colectiva e na expansão da consciência humana. Ao longo da história, a arte serviu como linguagem de resistência, meio de comunicação, veículo de emoção e instrumento de transformação. É uma das formas mais poderosas de expressar a complexidade da condição humana — e isso é tudo menos supérfluo.
O mercado de arte, tal como a própria arte, é plural, dinâmico e muitas vezes contraditório. Ao desmontarmos estes mitos, não só aproximamos o público do universo artístico, como também valorizamos práticas mais conscientes, inclusivas e sustentáveis dentro do sector. Mais do que cifras, o verdadeiro valor da arte está na sua capacidade de nos fazer pensar, sentir e ver o mundo de forma diferente. Por isso, seja como artista, colecionador, espectador ou crítico, o mais importante é participar — com curiosidade, respeito e espírito aberto.