
A história da arte portuguesa é feita de idas e vindas entre a abstração e a figuração, entre a busca pela pureza da forma e o reencontro com o corpo, o rosto, o quotidiano. Se durante grande parte do século XX a pintura abstrata dominou o discurso crítico e institucional, hoje assiste-se a um renovado interesse pela pintura figurativa em Portugal. Este regresso não é apenas nostálgico ou reacionário; pelo contrário, é um movimento que procura reinterpretar a tradição, dialogar com a história da arte e responder a inquietações contemporâneas.
Neste artigo, exploramos como a pintura figurativa está a ser reinventada em Portugal, quem são os artistas que lideram este movimento e de que forma as novas gerações estão a reabrir um espaço de experimentação para esta linguagem.
A Tradição Figurativa em Portugal: Breve Contexto Histórico
A pintura figurativa portuguesa tem raízes profundas, que vão desde os retábulos quinhentistas até às cenas intimistas do naturalismo oitocentista. No século XX, nomes como Amadeo de Souza-Cardoso ou Almada Negreiros deram novos caminhos à figuração, cruzando-a com as vanguardas internacionais. Mais tarde, artistas como Paula Rego afirmaram uma narrativa profundamente pessoal e crítica, mostrando como a figura humana podia ser veículo de denúncia social e introspeção psicológica.
No entanto, a partir dos anos 60 e 70, com a ascensão da abstração, do minimalismo e da arte conceptual, a figuração perdeu centralidade. Muitos críticos viam-na como um resquício tradicionalista. Foi apenas no virar do milénio que o pêndulo começou a regressar: a pintura figurativa ressurgiu, agora carregada de ironia, hibridismo e consciência histórica.
A Nova Onda Figurativa: Entre a Tradição e a Contemporaneidade
O regresso da pintura figurativa em Portugal não pode ser visto como um simples revivalismo. Os artistas que hoje trabalham nesta linha fazem-no com plena consciência de que vivem num mundo saturado de imagens — do cinema às redes sociais, da publicidade à cultura digital. Por isso, a sua figuração não é um retorno à inocência, mas uma releitura crítica, por vezes irónica, do corpo e da realidade.
João Gabriel: A Melancolia do Quotidiano
Um dos nomes mais relevantes desta renovação é João Gabriel. O seu trabalho, frequentemente construído a partir de fotografias e imagens mediáticas, reflete sobre a fragilidade da experiência contemporânea. As suas figuras aparecem em cenários silenciosos, captadas num instante suspenso, como se estivessem prestes a desaparecer. A sua pintura tem uma densidade atmosférica que remete para a tradição, mas também uma inquietação que é totalmente atual.
Teresa Murta: Corpo, Intimidade e Identidade
Outra artista que se destaca nesta cena é Teresa Murta, cujo trabalho parte do corpo para explorar temas ligados à intimidade, à sexualidade e à construção da identidade. A sua pintura é frontal e visceral, aproximando-se por vezes da brutalidade expressionista. Ao recuperar a figura humana, Murta afirma a urgência de pensar o corpo no espaço social contemporâneo, especialmente no contexto das questões de género.
Tiago Alexandre e a Cultura Visual Pop
Se Murta explora a interioridade, Tiago Alexandre vai buscar inspiração ao universo pop, à cultura digital e ao imaginário urbano. As suas figuras misturam elementos da publicidade, dos videojogos e das redes sociais, criando uma pintura híbrida, onde o humano se confunde com o artificial. A figuração, neste caso, torna-se um campo de jogo crítico face à avalanche de imagens que moldam o nosso quotidiano.
Diálogo com Paula Rego e Outras Referências
É impossível falar da pintura figurativa contemporânea em Portugal sem evocar a sombra tutelar de Paula Rego. A sua obra, amplamente reconhecida a nível internacional, mostrou que a figuração podia ser ferozmente política e poética. Muitos jovens artistas dialogam com o seu legado — não para a imitar, mas para prolongar essa ideia de que a figura humana é um campo de batalha simbólico. Também Julião Sarmento, embora muitas vezes associado a uma prática conceptual e interdisciplinar, explorou a figura humana de forma obsessiva, deixando marcas em gerações seguintes. Do mesmo modo, Noronha da Costa, com as suas figuras nebulosas, trouxe para a pintura figurativa portuguesa um tom enigmático e cinematográfico que ainda hoje ressoa.
Gerações Emergentes: A Figuração como Espaço de Resistência
Entre os artistas mais jovens, nota-se uma tendência clara: usar a figuração como estratégia de resistência à desmaterialização da arte. Num mundo em que tudo se torna imagem digital, a pintura figurativa afirma-se como um ato de materialidade, de tempo lento, de presença. Artistas como Diana Policarpo e Marta Jamrós (apesar de trabalharem em territórios híbridos entre a performance, o som e o desenho) recuperam a figuração como ferramenta narrativa. A presença do corpo, mesmo quando fragmentada ou estilizada, funciona como âncora de reflexão sobre política, ecologia ou identidade. Outros, como Francisco Vidal, exploram a figura através de um gesto pictórico intenso, que mistura influências africanas e europeias, criando retratos e cenas carregadas de energia cromática e crítica social.
A Receção Crítica e Institucional
Se nos anos 90 a pintura figurativa era vista com algum desdém, hoje o panorama é bem diferente. Museus, galerias e colecionadores portugueses voltaram a interessar-se por esta linguagem. Exposições recentes no MAAT, no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado ou em galerias privadas como a Filomena Soares e a Madragoa têm dado destaque a artistas que trabalham a figuração. Também a crítica acompanha este movimento, vendo nele não um retrocesso mas um campo fértil de inovação. A figuração contemporânea portuguesa é entendida como um espaço de experimentação conceptual e formal, e não como mera repetição académica.
O Futuro da Figura na Pintura Portuguesa
A renovação da pintura figurativa em Portugal parece estar apenas a começar. As novas gerações estão menos preocupadas com as divisões rígidas entre abstrato e figurativo, e mais interessadas em criar linguagens híbridas. A figura surge, por vezes, distorcida, pixelizada, estilizada, mas mantém-se como ponto de ancoragem.
Neste sentido, a figuração não é apenas um estilo, mas uma estratégia: um modo de devolver humanidade à arte, de falar do corpo num tempo em que este é constantemente mediado por ecrãs, algoritmos e representações artificiais.
A pintura figurativa em Portugal vive hoje um momento de renovação vibrante. De João Gabriel a Teresa Murta, de Tiago Alexandre a Francisco Vidal, passando pela influência indelével de Paula Rego e Julião Sarmento, esta tradição ressurge como um campo de experimentação crítica, poética e política.
Num país onde a arte muitas vezes se debate com a falta de reconhecimento institucional, a vitalidade da pintura figurativa é um sinal de resistência e de futuro. Ela recorda-nos que, apesar da avalanche tecnológica e da abstração conceptual, o humano — com os seus corpos, rostos e narrativas — continua a ser o centro do imaginário artístico.
No fundo, a renovação da pintura figurativa em Portugal não é apenas uma questão de estilo; é um gesto de reinscrição da arte na vida.