Lisboa é hoje reconhecida como uma cidade de referência nos circuitos internacionais da Arte Urbana. A revolução dos cravos, 25 de abril de 1974, data que assinala o fim da ditadura de Salazar, foi um marco para o movimento de arte urbana. Nesta altura revolucionária esta forma de expressão teve um grande impacto e força, tendo sempre um propósito maior: a comunicação. Desde então, a arte urbana continua a comunicar com os seus espectadores nacionais e internacionais. Cada vez mais este movimento artístico traz mais pessoas à cidade para verem os grafittis dos seus artistas prediletos. De facto, a capital portuguesa cresceu e atualmente a arte urbana está presente em todos os cantos da cidade, trazendo tanta procura como a azulejaria e a calçada portuguesa. Em resposta, ao grande crescimento desta área criativa, surgiu a Galeria de Arte Urbana do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa. Este órgão tem como principal missão a promoção do graffiti e da street art em Lisboa, dentro de um quadro autorizado e segundo uma óptica de respeito pelos valores patrimoniais e paisagísticos, em oposição aos actos ilegais de vandalismo que agridem a cidade. Descubra mais sobre a Galeria de Arte Urbana nesta entrevista.
Como surgiu a Galeria de Arte Urbana (GAU)?
A cidade de Lisboa, no início dos anos 2000, ficou marcada por um boom de fluxos turísticos, face a um conjunto de grandes acontecimentos com impacto à escala global, exponenciado pelo aparecimento de companhias low cost a escolherem Lisboa como grande destino, o que aumentou a pressão sobre o sistema urbano, abrindo novas frentes de preocupação.
É disso exemplo a intensificação da atividade “artística” espontânea, em que a rua e o espaço público são “telas” preferenciais, o qual resulta numa degradação da qualidade da imagem urbana.
Quando, em 2008, se produziam as primeiras reflexões sobre o tema, restringir a condição da arte urbana ao aspeto vandálico seria uma atitude injusta e redutora, porque significaria votar ao esquecimento todo um vigoroso movimento artístico, que poderia (como se comprova hoje) prestar um contributo valioso para o usufruto estético na vivência do espaço público. Todavia, esta postura só faria sentido se assumida em consonância com os princípios de salvaguarda, conservação e restauro do património artístico e cultural de Lisboa, e como meio de consciencialização para a sua diversidade e riqueza, e de respeito perante essa herança estética legada não só pelos nossos antepassados, como pelos nossos contemporâneos.
A Câmara Municipal de Lisboa já apoiava uma comunidade artística efervescente, que reivindicava mais espaço e mais possibilidade de criação. É neste contexto que surge a Galeria de Arte Urbana, que adota como prioridade principal, a promoção dos discursos plásticos associados ao graffiti e à street art presentes nas ruas da cidade, dentro de um quadro autorizado, enquanto estratégia de renovação de intervenção artística no espaço público e de salvaguarda patrimonial. Por outro lado, surgiu num momento em que esta comunidade afirmava a necessidade de espaços de intervenção na cidade, ao mesmo tempo que existia um crescente preconceito face a este tipo de expressão, que ia pontuando de forma ilegal vários espaços da cidade, como o Bairro Alto.
Esta situação fez com que a CML sentisse necessidade de pensar numa estratégia assente na criação de espaços de intervenção (a Calçada da Glória é seminal) e no fortalecimento de laços com esta comunidade artística, procurando desenvolver um conjunto de atividades e projetos únicos. Por exemplo: o Projeto Cronos, a Intervenção de Aryz na Avenida da Liberdade, Reciclar o Olhar de pintura de vidrões e camiões de recolha de lixo ou ainda Os Rostos do Muro Azul).
Photo credits: © CML | DMC | DPC | Bruno Cunha
Desde da revolução dos cravos até à atualidade, como é que a arte urbana trouxe valorização à cidade? Quais foram os contributos da GAU para a cidade de Lisboa?
São momentos históricos e de afirmação totalmente diferentes, e com uma cronologia não muito próxima. Se por um lado temos o pós-Estado Novo com uma afirmação política muito importante, por outro temos uma afirmação que é predominantemente artística, separadas por mais de 30 anos. Há um salto grande que ainda abarca momentos seminais do graffiti nos anos 90, e todos os eventos culturais que Lisboa promoveu.
Podemos afirmar que hoje a arte urbana (e os artistas que a produzem) é indissociável da afirmação cultural da cidade de Lisboa, como uma das áreas mais reconhecidas do espaço público e da arte pública. Mesmo que este tipo de intervenção seja efémera, ela atesta o vigor que a cidade promove, com a quantidade, a qualidade e a dispersão de intervenções pela cidade, permitindo valorizar territórios, que anteriormente não teriam essa capacidade de atração e de orgulho. A afirmação desta expressão artística permitiu que os artistas portugueses se afirmassem e se projetassem, fazendo da cidade de Lisboa uma das Capitais de street art mais reconhecidas internacionalmente.
Enquanto projeto da Câmara Municipal de Lisboa, a GAU contribui e constrói esta estratégia, mapeia, organiza e promove esta expressão artística, contribuindo de forma significativa, quer pela promoção de projetos relevantes (Festival MURO, Festival Iminente, Incursões pela Arte), quer pelo apoio ao desenvolvimento de projetos específicos próprios ou apoiados regularmente.
É muito relevante que a GAU seja uma das poucas estruturas institucionais a operar nesta área, estando mesmo sinalizada como caso de estudo pelo WCCF (World Cities Cultural Fórum) – Urban Art Gallery (worldcitiescultureforum.com).
Photo credits: © CML | DMC | DPC | José Vicente
Quem se pode candidatar? Como funciona todo o processo de seleção?
Qualquer artista pode apresentar uma candidatura espontânea de intervenção na cidade que será avaliada, com base num conjunto de critérios que podem ser consultados no nosso sítio: GAU: Onde pintar (cm-lisboa.pt). Temos também um processo curatorial na GAU assente no desenvolvimento de projetos específicos, onde convidamos os artistas a intervirem no âmbito de um tema e em que tentamos primar pelo alargamento da presença de inúmeros artistas nacionais e/ou internacionais. Promovemos ainda a abertura de concursos públicos (open call), onde qualquer artista se pode candidatar, sendo a seleção efetuada por um júri nomeado.
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Como escolhem os locais de intervenção?
Os locais de intervenção são escolhidos a partir do mapeamento, da temática e da tipologia de superfície que são importantes para cada projeto. Há uma estratégia importante e deliberada, de criar núcleos descentralizados que distribuam peças artísticas e que façam a gestão de galerias de arte pública em espaços desvalorizados de Lisboa, como forma de valorização intrínseca da cidade como um todo. Tentando perceber cada peça e artista, tentamos também escolher a melhor superfície para a intervenção, dependendo do estilo, da técnica e da dimensão.
Photo credits: © CML | DMC | DPC | Bruno Cunha
Trabalham com diversos projetos simultaneamente. Há algum que gostassem de partilhar?
MURO LX_ | Festival de Arte Urbana de Lisboa é um acontecimento que se reveste de grande relevância, na medida em que reflete e materializa, através de um evento circunscrito no espaço e no tempo, a política e a linha de orientação programática que o pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa preconiza para o graffiti e a arte urbana.
É um Festival bienal e dá corpo à necessidade de diversificação da oferta cultural em Lisboa, gerando núcleos descentralizados que distribuí peças artísticas e gera galerias de arte pública em espaços desvalorizados e descentralizados da cidade de Lisboa, contribuindo igualmente para uma valorização do património habitacional municipal, gerido pela Gebalis, Empresa Municipal. Esta estratégia é alinhada enquanto ferramenta com a estratégia cultural da cidade.
Falando só do MURO, as 4 edições realizadas (2016 | Carnide, 2017 | Marvila, 2019 | Lumiar e 2021 | Parque das Nações), tiveram a participação de 187 artistas, 141 peças de arte urbana (68 em edifícios municipais, o que representa 48%), a que acrescentamos 121 visitas guiadas durante o período do Festival (muitas mais ocorreram a posteriori), 67 oficinas realizadas durante o Festival. Podemos nomear Artistas como: Add Fuel, AkaCorleone, Bordallo II, Borondo, D*Face, Kobra, Odeith, Pantone, Pantónio, Peeta ou Zurik (só para nomear alguns), que povoam estes territórios com grande qualidade artística e reconhecimento mundial, o que só valoriza estes bairros e territórios.
O programa Incursões pela Arte, que é realizado anualmente, em conjunto com o Departamento de Educação, que desenvolvemos em Escolas de 1º e 2º ciclo, e que já promoveu arte urbana em 8 freguesias, 18 escolas (39 turmas, 54 professores, 1207 alunos), que envolveu 10 artistas, promoveu 28 visitas guiadas. É um projeto do nosso Serviço Educativo muito importante uma vez que através da nossa metodologia (ver, ouvir, criar) permite perceber o que fazemos (ver – visitas guiadas), o que podemos desenvolver (ouvir – criar um projeto de espaço público em sala de aula) e intervir (criar – pintar um mural em espaço escolar).
Também o projeto Um Bairro, Um Museu, desenvolvido com a Gebalis, o Museu de Lisboa e a Junta de Freguesia da Ajuda foi muito importante. A Gebalis desafiou a GAU a intervir num conjunto de fachadas no Bairro 2 de Maio (Ajuda), conhecido pela sua dimensão associativa e comunitária, pelo que era importante pensar num lógica participativa e comunitária para a intervenção. Convidámos o Museu de Lisboa a escolher 12 obras do seu acervo, que seriam escolhidas pelos moradores e residentes (40 lotes e 106 famílias foram contactadas), foram discutidas as obras e a sua temática em assembleias comunitárias com os artistas selecionados (Mariana Duarte Santos e Regg) que iriam reinterpretar as obras (6 obras selecionadas) à luz de figuras e histórias do Bairro 2 de Maio, e que resultou em 6 empenas realizadas.
Também o Programa de Arte Pública, realizado em parceria com a Underdogs, desenvolvido anualmente e que chega aos 10 anos, onde assinalamos a presença de 49 artistas (muitos de renome internacional), com 53 intervenções em 21 freguesias da cidade de Lisboa, e que muito fez e continua a fazer pela internacionalização da cidade de Lisboa no panorama mundial da arte urbana.
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A GAU envolve a realização de visitas guiadas, workshops, e de outras atividades vocacionadas para diversos públicos, nomeadamente população escolar e em bairros sociais, seniores, versando o ensino da história do graffiti e da street art, suas técnicas e discursos. Podem partilhar connosco as próximas atividades?
Vamos ter um ano de 2023 muito estruturado em torno do desenvolvimento do programa de Muros de Pintura Livre, que pretende criar um rede de espaços de pintura livre na cidade de Lisboa (à semelhança da Calçada da Glória). Queremos reprogramar a linha editorial da GAU, com o lançamento do número 10 da Revista da GAU, com a reedição dos números anteriores, e a edição da nova revista, a 11, que terá uma linha editorial diferente, com maior destaque para a cidade, para os artistas e para as peças de arte urbana.
O Serviço Educativo também terá maior destaque em 2023, com os percursos autoguiados, para além da continuação do desenvolvimento dos projetos Incursões pela Arte, das Oficinas e das Visitas Guiadas. Queremos ter uma maior presença física em eventos municipais e de arte urbana, pelo que estamos a desenvolver uma ideia de stand que possa ser uma ferramenta de intervenção e programação da GAU.
Photo credits: © CML | DMC | DPC | Bruno Cunha
O festival de Arte Urbana de Lisboa, MURO_LX, desenvolvido pela Galeria de Arte Urbana (GAU), foi criado em 2016 com o propósito de promover a Arte Urbana na cidade de Lisboa. Já tem novidades sobre a próxima edição?
Não podemos ainda revelar muito sobre a próxima edição mas já estamos a trabalhar nela.
Cada vez há mais grafittis em Lisboa. Podemos afirmar que a cidade está a viver uma efervescência cultural?
A GAU e a arte urbana têm um papel fundamental no fomento da Cultura, contribuindo para a efervescência cultural da cidade. A Cultura é um fator estratégico e estruturante para a criação e preservação de identidades, bem como um catalisador para a mudança e progresso rumo ao futuro, numa dimensão transversal e social. A Arte Urbana é também uma importante ferramenta para o atingir. Sentimos que a Cidade produz mais e tem mais gente a trabalhar em Cultura, e cabe à Câmara dar lugar a esses espaços, criadores, produtores e atores capacidade de construção e programação.
Photo credits: © CML | DMC | DPC | Bruno Cunha
Atualmente há mais participação da população e das organizações, públicas e privadas, na programação, execução e divulgação das intervenções de arte urbana realizadas na cidade ou ainda existe muito preconceito em relação a esta expressão artística?
Ainda existe algum preconceito, basta ver as nossas redes sociais, mas tem sido esbatido pela força do trabalho que tem sido desenvolvido, pela capacidade criativa que os artistas têm demonstrado. Podemos contar a história de um morador em Marvila que ficou muito revoltado por não termos pintado a fachada do prédio onde vivia, e que exigia que essa pretensão fosse cumprida. Esta situação seria impensável há 14 anos atrás. Vemos que a presença da arte urbana é muito relevante na afirmação social, artística e turística da cidade de Lisboa.
Como vêem o futuro da arte urbana em Lisboa?
Com mais artistas, mais projetos e uma estratégia consolidada. Mais muros, que não são barreiras, mas sim veículos de afirmação artística, de produção cultural e valorização territorial.